sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O Epílogo - Capítulo 8: Personalidade

Fui a última a entregar a prova. Trêmula, passei a folha toda escrita para Mabel, que a pegou com suavidade. Saí da sala sem olhar para trás. Quando pisei no taco do corredor, senti um estado de torpor. Como uma professora poderia me abalar tanto com meias palavras e olhares sutis?

Respirei fundo. Senti-me como em um desafio. Estudei como louca, e fiz a prova minuciosamente com precisão. Sabia que tinha ido bem, e essa certeza me acalmou. Foi quando ouvi a voz dele.

- Bom dia, aluna. Não se esqueça, temos um encontro às 3 da tarde. - sorriu Lerry Angels, meu professor de Introdução ao Direito Civil.

Foi o bastante para meu coração vacilar. Era adolescente demais deixar a palavra "encontro" me afetar. É claro que a parte racional que me restava no fundo de meu cérebro inebriado pela beleza desse homem sabia que a palavra "encontro" se aplicava a aula de hoje. Mas eu sabia que o fato de ele lembrar que eu era uma das componentes de sua lotada sala de aula já me fez ganhar o dia.

- Claro professor. Bom dia. - falei, resfolegando.

Ele passou pelo corredor com seus passos impecáveis, a silhueta máscula roçando delicadamente na camisa social azulada, e o dorço reto de seu porte invejável. Meus olhos não me obedeciam, e o acompanharam até que sumiu totalmente escada abaixo.

- Para de babar! -a voz risonha de Ember apitou em meu ouvido.
- Fala baixo! - pedi, ficando vermelha.
- Relaxa, antes de te zuar, eu tava ali atrás babando também. Esse cara é um pecado. - Ember riu.
- Ele é... muito bonito. - comentei, tentando fechar o assunto.
- Não seja modesta. A baba escorrendo pelo seu queixo acha Lerry muito mais do que só bonito. - Ember me deu dois tapinhas no ombro.
- Pare com isso. - revirei os olhos.
- Sabia que ele é divorciado. - ela sorriu maliciosamente.
- Séri... ahn... é... e eu com isso? - interrompi minha indignação por saber que Lerry estava livre, leve e solto.
- Rá! Tudo bem. Eu também me sinto uma reles mortal diante dele. É como todas se sentem. Mas ele é um alvo impossível mesmo. - Ember foi contando, andando comigo pelo corredor.
- Claro que é... - concordei.
- Não por ser tão lindo, mas é que ele não confia mais nas mulheres. A ex esposa dele lhe deu um belo golpe. Eles moravam numa mansão na Califórnia. Lerry fez carreira rápido como advogado, sabe. Ele estourou quando venceu um caso contra Mabel.
- O que? Ele já venceu Mabel no tribunal? - fiquei pasma.
- Sim. Foi um caso difícil. O cliente de Lerry estava sendo acusado de estuprar a matar a própria filha. O duro é que haviam poucas provas, nada o suficiente para por o homem na prisão. Mabel ficou cega com o caso, juntou todas suas forças e moveu um processo contra o pai. O cara nem era rico, mas Lerry o defendeu porque tinha certeza de que o coitado era inocente. Afinal, a última pessoa que tinha estado com a menina era o namorado drogado dela. Só que a lei tava no pé do pai, pois ninguem sabia onde o namorado estava.
- Puxa. E aí?
- E aí que Lerry venceu o caso. O pai chegou a ir a juri popular. Mabel recorreu, mas o resultado foi o mesmo. Inocente por falta de provas. A menina que morreu tinha 17 anos, e o pai nunca tocou nela, segundo todas as evidencias. Por que a estupraria e mataria justamente depois de tanto tempo? Justo quando ela arranjou um namorado drogado?
- Mas então... Mabel deve odiar Lerry. - supus.
- Sim, e ele a odeia também. Ele é muito íntegro. Mas no fim das contas, ela que venceu. - Ember deu de ombros.
- Ela? Mabel? Mas o homem não era inocente? - questionei.
- Era... mas seguindo a lenda do epílogo, no dia seguinte, o pai apareceu assassinado, esquartejado em sua banheira. - Ember contou, como o olhar sombrio.
- Isso foi bem... suspeito... - eu estava em choque.
- Talvez, mas é a velha história. Nada de provas contra Mabel.
- E a esposa do Lerry?
- Bom, ela era uma vadia. Traiu ele com o melhor amigo, o juiz Antonny Dawin. Conhece?
- Trocou o advogado pelo juiz mais famoso da Califórnia... claro.
- É... e entrou com um processo requerendo grande parte dos bens, principalmente a mansão. - Ember riu.
- Que maldita! E o Lerry?
- Ah, ele estava desolado. Nem se manifestou. Deixou tudo pra ela, prestou concurso para professor, se mudou para essa cidade, e hoje mora num pequeno apartamento a alguns quilometros daqui. - finalizou Ember.
- Ele deve ser muito infeliz. - me penalizei.
- Nem tanto. Ele não quis mais advogar na parte penal né. Sei lá, penso que ele acha o mundo dos tribunais muito sujo. Dar aula é mais pacífico. Ele vem, leciona, suporta bem pouco a presença indesejável de Mabel, vai pra casa, toma um chá, prepara a aula do dia seguinte e dorme. Era tudo o que um homem como ele queria.

Sorri para Ember sobre a forma simples como ela falou das vontades de Lerry. Se antes eu já o admirava por ser lindo, agora o admirava em dobro por sua personalidade. Deixei Ember no saguão principal, e me dirigi até o quartinho onde morava com Anielle. Minha cabeça permanecia em Lerry.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O Epílogo - Capítulo 7: Insegurança

Eu estava debruçada na cama sobre um livro grosso de Direito Penal. Meus olhos corriam as linhas febrilmente. Eu queria mostrar que não precisava de uma fita negra em volta do pescoço para tirar um dez na prova. Aquelas nojentinhas sombrias iam ver só. Foi quando Anielle, minha companheira de quarto, entrou tossindo forte.

- Você não sarou dessa gripe ainda? - comentei, preocupada.
- Ah Kris, o clima daqui é muito louco. - ela tossiu mais uma vez.
- Já foi ao médico? - perguntei.
- Por causa de uma gripe? Não amiga, eu tenho mais o que fazer. Vim buscar um livro. Tenho prova amanhã. - ela desconversou.

Observei a minha companheira magrinha se curvar e pegar um livro na gaveta e sair do quarto com movimentos muito fracos. Desde que eu chegara nesse campus, Anielle estivera doente. Sempre tossindo, sempre fraca. O mais engraçado é que nos primeiros dias eu achava que ia acabar pegando essa gripe. Mas ela não me passou o vírus, mesmo dormindo e comendo no mesmo ambiente que eu todos os dias.

A convivência fez com que eu me apegasse a Anielle. Ela era muito doce. prestativa e ouvia minhas reclamações sobre o "grupinho do mal" (como eu chamava as fiéis discípulas de Mabel) me dando razão e me dizendo pra ter calma. Essa gripe dela estava me atormentando. Respirei fundo e decidi que assim que minha prova passasse, levaria Anielle ao médico.





No dia seguinte, acordei cedo e deixei o café pronto. Anielle merecia um descanço. Não que meu café fosse uma maravilha, mas melhor do que ela ter que fazer com o corpo moído pela gripe, ah isso era. Fui a primeira a entrar na sala, e me sentei reta na última carteira, como costumava sempre fazer. Enquanto revisava a materia, o sol que reluzia na janela ficou fraco, fazendo com que a sala de aula perdesse a cor. O saltinho fino tocando o assoalho fez minha espinha congelar. Olhei vagarosamente para frente, e meus olhos deram com os de Mabel, que me fitava com um sorriso estranho. Ela colocou sua bolsa prateada sobre a mesa, e retirou dela um pacote com folhas. Meus olhos não conseguiam deixá-la:

- Bom dia Kris. Adoro alunos pontuais. - sua voz sóbria ressoou pela sala vazia, me inebriando de admiração.
- Bo-bo-bom dia doutora Mabel. - foi só o que consegui gaguejar.
- Estudou para a prova? - ela sorriu, mas incrivelmente ela não parecia doce nem mesmo quando tentava ser gentil.
- Estudei sim... a semana toda. - resfoleguei.
- Então por que está estudando agora? - sua voz ficou gélida, mas o sorriso continuava em seu rosto perfeito.
- Só estou revisando enquanto aguardo o início da prova. - respondi, já incomodada.
- Não confia em si mesma e nem em todo o esforço que já investiu no que estudou? - ela me fitou duramente.
- Revisar nunca é demais. Gosto de me certificar de que está tudo certo. - tentei ser firme, mas ela me abalava demais.
- Isso é insegurança! - ela acusou, rindo ao fim da frase.
- Não, isso é responsabilidade! - objetei, o que a fez parar de rir.

O riso de desdém silenciado pela minha objeção se transformou em um olhar curioso, que vasculhava o meu todo. Mabel deu a volta por sua mesa, deixando a mão direita roçar pelo pacote de folhas, andando suavemente. Parou um instante antes de chegar ao fim da mesa, e abriu um sorriso determinado. Fiquei completamente confusa.

- Você só precisa ser lapidada. - ela sussurrou.
- O que? - perguntei, pela incerteza do significado do que ela dissera.

Nesse momento, outros alunos entraram na sala, e seu olhar determinado me deixou assim que Louise apareceu. Mabel apoiou a mão orgulhosa sobre o ombro de sua pupila, e disse algo que não pude ouvir de onde estava. A fita negra em volta do pescoço de Louise transformou minha confusão em raiva. Ótimo! Agora eu estava desestabilizada segundos antes da prova para a qual mais havia me dedicado nesse semestre. Fechei o livro grosso com ódio mortal, mas parei de bufar assim que percebi que Mabel, da frente da sala, ainda me olhava, e se deliciava de minha impulsividade. Naquele momento me dei conta de que aquela mulher esperava algo de mim... algo que eu nem imaginava.

domingo, 11 de setembro de 2011

O Epílogo - Capítulo 6: A Lenda

- Não se trata de ter cometido o crime ou não. Aquilo é uma jaula de gladiadores. Mabel parece uma fera. Ou ela vence o caso, ou vence. É guerra! O foco não é a inocência, e sim a luta severa travada entre defesa e ministério público. - Ember contava febril de admiração.
- Ember, não gostei muito disso. Nós aqui estudamos justiça, não vitória ou derrota. Mabel deve ter pegado alguns réus inocentes, não é possivel. - refleti.
- Ela sempre consegue a condenação máxima, Kris. Se um de seus réus foi inocente, que Deus o tenha e o compense pelo sofrimento injusto. E que Deus tenha piedade da alma de Mabel, que ajudou quase 90% na execução de tal injustiça. - bradou Ember, parcialmente solene, parcialmente irônica.
- Que Deus o tenha? Por que? Ela sempre consegue pena de morte? - me assustei.
- Não, tudo depende do caso que ela pega. Mas Mabel só opta pelos casos mais tenebrosos. Assassinato, estupro, pedofilia, tráfico... coisa feia mesmo. E as penas variam, levando em conta que existem atenuantes em todos os casos. Só que ninguém cumpre a pena exatamente. Essa é a lenda do epílogo que torna Mabel um mistério. - Ember ficou sombria.
- Lenda do Epílogo? - me interessei.
- É, uma coincidência de alguns anos já. Não existem provas nem nada que ligue Mabel a uma conduta errada. A maioria acredita que Mabel é visada demais por ser uma incrível promotora, e pessoas mal intencionadas tem tentado incriminá-la ou sujar sua carreira com a lenda do epílogo. A policia chegou até a prendê-la, mas a lenda ocorreu mesmo com ela estando sob guarda judicial. Logo, ninguém pode acusá-la disso. Também, não faria o menor sentido ela ser a culpada. - contou Ember.
- Okay, mas você não explicou que parada é essa de lenda do epílogo. - insisti, curiosa.

Ember suspirou, e revirou os olhos.
- Você nunca lê jornais?
- Ah, depende. Eu vim de outro estado, esqueceu? -fiquei envergonhada.
- Tah, mas esse caso foi explorado pra caramba pela mídia.
- Ember! Me conta!

Ela se ajeitou no banco do pátio onde estávamos, colocou o último pedaço de pão na boca e me fitou séria:
- Primeiramente, você sabe o que é epílogo?
- É tipo uma extensão do fim de uma história, não é? Aquele finalzinho nos livros e tals. - chutei
- Definição correta: é uma parte de um texto, no final de uma obra literária ou dramática, que constitui a sua conclusão ou remate, que pode servir também de apêndice. É como se fosse algo além do fim, uma continuação mais profunda. - ela parecia culta agora.
- Entendi, e o que isso tem a ver com a Mabel?
- Bom, toda vez que ela consegue a condenação de alguém, é como se fosse o fim. Acabou alí pro réu. Fim da estraga, game over, pro xadrez meu filho. Tudo bem. Só que, no dia seguinte... o réu aparece morto brutalmente e misteriosamente. - a voz dela ficou grave.
- Ah meu Deus! Tipo um crime?
- Tipo uma segunda sentença. Uma extensão do fim. Um segundo final, mais profundo. Tipo justiça com as próprias mãos. Seja lá quem for que faz isso pega o coitado do condenado, tira ele da prisão e o leva até um local, onde o tortura e o mata de forma brutal. No outro dia, encontram o tal já assassinado. É por isso que os jornais deram o nome para esse caso de "epílogo", o segundo final.- ela suspirou.
- Mas e aqueles que Mabel consegue pena de morte? Eles já estão mortos...
- Esses são os casos mais interessantes. O responsável pelo epílogo espera a execução do condenado. Tipo, espera o cara tomar a injeção letal. A primeira sentença se cumpre. E o cara aparentemente morre. Mas daí, no dia seguinte, ele aparece morto em outro local. Morto novamente. Estripado, queimado, algo bem cruel que dão provas físicas de tortura. E quando a perícia calcula a hora da morte... ela é posterior a primeira execução.
- Como isso é possível? - fiquei em choque.
- Não sei. Os policiais monitoram os presos, avaliam a injeção letal. É tudo organizado. Mas nunca um único réu escapou. Parece até mesmo ser algo sobrenatural. O epílogo age como um tipo de vingança. A pessoa morre da mesma forma como feriu sua vitima. É de perder o sono os casos viu. - Ember deu dois tapinhas no meu ombro.
- E se Mabel é o alvo, por que o governo não a aposenta? Por que não a afasta do cargo até averiguarem a situação? Não podem permitir que mais pessoas sejam torturadas assim. - fiquei indignada.
- Ah Kris, tem três motivos pra isso. Primeiro, Mabel é a melhor promotora de todos os tempos, com uma influencia do caramba no mundo juridico. Segundo, o pai dela é senador, rico e influente... ninguem ousaria desafiá-lo tentando afastar Mabel daquilo que ela mais ama fazer. E terceiro, estamos falando de traficantes, estupradores, pedófilos, assassinos, espancadores, psicopatas e criminosos... quem poria a mão no fogo por eles? - raciocinou Ember.

Suspirei. Algo em Mabel me intrigava. De repente descubro que essa mulher é um lago profundo de mistérios. As aulas de Direito Penal renderiam boas pesquisas.



sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O Epílogo - Capítulo 5: Fascínio momentâneo

O longo corredor todo madeirado tinha um toque sombrio. Confesso que adorei o clima da faculdade em relação ao ambiente visual. Andando pelo taco perfeito, senti como se fizesse parte daquele lugar. Confortável. Dei-me conta de que adorava coisas sombrias. Mas minha sensação de confortabilidade se esvaiu no instante em que as vi vindo em minha direção.

Cinco garotas lindas, estonteantes e incrivelmente sombrias. Três delas eram louras, e as outras duas eram uma ruiva e outra negra. Apesar de fisicamente diferentes, todas tinha três características em comum. Primeiramente, claro, a fita negra em volta do pescoço. Segundo, observava-se rapidamente que todas tinham preferência por roupas com tons escuros e frios, que iam de cinza a roxo com pouca diversidade. Por último, havia uma semelhança em seus olhares. Todas tinham o olhar intensamento duro e frio. Nada de sorriso, nem um único sinal de simpatia. E elas não pareciam olhar para o nada. Não focavam ninguém.

E foi dessa forma que elas passaram por mim. Sem nem sequer fazer menção de minha existência, continuaram reto, indo para onde quer que fosse sem se importar com ninguém. Entre elas, reconheci Louise, a primeira garota que vi com a fita no pescoço na aula de Mabel.

Revirei os olhos. Metidas e idiotas. Na certa não passavam de uma panelinha de nerds que se achavam. Lindas, mas nerds. Eu queria ser boa em direito penal, claro. Mas não queria aquela droga de fita. Entendi perfeitamente o rancor de Ember naquele momento. Quem precisava daquela fita idiota?

Desci as escadas devagar, voltando a degustar o ambiente em que me encontrava. Cheguei a sala em que teria aula de Introdução ao Direito Civil. Assim que passei pela porta, meus olhos se arregalaram. Na mesa a frente da lousa havia um homem alto e belo apoiado sobre um livro grosso empoeirado. A silhueta máscula bem delineada coberta por uma camisa social branca fina estava encurvada devido a posiçao, mas isso não desfocava o fato de que ele era autenticamente lindo. Os cabelos castanhos claros bem penteados, curtos, e os traços intelectuais do rosto revelavam um verdadeiro gentleman. Ele usava óculos de armação negra, mas isso só acrescentava ainda mais ao seu charme. Meu coração acelerou. Ele só podia ser o professor desta aula. Foi nesse momento que alguns alunos passaram conversando pela porta e isso tirou o belo mestre de sua posição inicial. Ele olhou para mim docemente:

- Bem vinda, aluna. - sua voz era rouca e suave.
- O-o-obrigada. - gaguejei.
- Por que não se senta?
- Ah, ah sim, é... vou me sentar. - fiquei desajeitada.

Eu me senti a idiota do ano. Sentei-me rígida na última cadeira da sala, bem no fundo, querendo que o chão abrisse e me engolisse. Respirei fundo, mas toda vez que fitava a figura à frente da sala, resfolegava novamente. O nome escrito na lousa era Lerry Angels. Sugestivo, ele parecia mesmo um anjo. Falava docemente, bem calmo, e sua matéria parecia tranquila. Observei a sala, e vi como todas as garotas presentes suspiravam. Pelo menos ele já devia estar acostumado a babaquice temporária que causava em mulheres por sua beleza. Ele devia ter uns trinta anos, mas quando contou sobre sua carreira de advogado, percebi que poderia ter mais, apesar de sua beleza não deixar aparentar a idade.

Apesar de meu fascínio momentâneo, confesso que a aula dele não me prendia nem metade do que me prendeu a de Mabel. Olhei meu papel de horários. Senti certa tristeza quando vi que só teria aula com ela novamente depois de dois dias. Não sabia o que exatamente me levava a ela... talvez fosse a matéria que ela administrava.


terça-feira, 19 de julho de 2011

O Epílogo - Capítulo 4: A Fita

- Para o direito penal norte-americano, o crime é a violação ou negligência de obrigação legal, de tal importância pública que o direito, costumeiro ou estatutário, toma conhecimento e implementa punição . A maioria dos crimes é de competência estadual . São crimes federais os que dizem respeito à propriedade do governo central, ou que se dão em âmbito de diferentes estados, ou que evoquem problemas nacionais, como o combate ao narcotráfico, por exemplo... - explicava Mabel, com tamanha autoridade que o silêncio na sala era quase tangível.

A voz dela era suave, nem alta, nem baixa. O tom perfeito. Meio doce, mas misterioso. Sua dicção impecável revelava sua classe e anos de estudo dedicado por trás dos traços lisos e esguios de seu rosto sedutor. O direito penal bailava em seus lábios grossos como um perfeito passo de dança muito bem treinado. Mas confesso que pesquei entre seu comportamento natural de professora um indício de atomaticidade. Não era ela alí por inteiro. Não que profissionais em seu ambiente de trabalho devessem demonstrar sua personalidade de forma indecentemente expositiva. Mas Mabel era disfarçada demais. Perfeita demais. Tinha autoridade demais. Nesse instante, fiquei curiosa para vê-la atuar em um tribunal.

Mabel finalizou a aula, e confesso que tive que piscar 3 vezes para sair da posição que me encontrava desde que esta mulher tinha começado a falar. Arrumei meu caderno dentro da pequena bolsa de couro. Suspirei. Sabia que logo precisaria de uma mochila de verdade, já que previa comprar trocentos livros. Caminhei vagamente para a porta da sala, fitando disfarçadamente Mabel, que conversava com uma aluna muito silenciosamente. A aluna possuía uma fita negra em volta do pescoço, fina, mas não pouco chamativa. Seus olhos eram escuros, e ela parecia um teatro em pessoa, como se escondesse algo dentro de si assim como Mabel. Foi nesse momento que percebi a presença colorida ao meu lado. Ember...

- Hey novata! Que aula você tem agora? - riu ela.
- Ahn... Introdução ao Direito Civil. Sala dezessete. - respondi, meio incomodada com o jeito intruso dela.
- Outch! É uma pena. Eu já fiz essa matéria. Não vou poder te acompanhar. Mas gostei de você. Aposto que sua terceira aula, após o almoço, é Sociologia. - sorriu ela, inquisitiva.
- Sim, como sabe? - dei um passo para trás.
- Eu já fiz seu horário, meu bem. Não sou uma caloura não. Mas Direito Penal não é fácil ser aprovado não. Com Mabel, ou você sabe, ou você vai tomar no seu...
- Ember, eu preciso ir... - cortei ela.
- Tudo bem. Até a aula de sociologia. - sorriu ela novamente.

Parei por um minuto, e voltei a ela:
- Ember - cochichei - quem é aquela garota estranho conversando com a professora?
- Louise? É estranha mesmo. Assim como a maioria das garotas que tiram 10 com Mabel. - já tagarelou ela.
- Dez?
- É... as melhores da sala usam essa fitinha preta idiota no pescoço. O engraçado é que são sempre mulheres. Nunca vi um rapaz ganhar essa fita. Elas também nunca deixam de acompanhar Mabel no tribunal. Viram discipulas. É hilário. Mas que se dane. Não quero uma fita idiota! - resmungou Ember, meio ressentida.
- Você não tira dez? - eu ri.
- É, você vai ver como é. Ri agora, bonitinha. - ela ficou meio infeliz.
- Okay Ember. Também gostei de você. Até a aula de Sociologia. - dei dois tapinhas nas costas dela.

Isso fez seu sorriso voltar ao rosto. Ela talvez só quisesse uma amiga. E eu estava precisando de uma que não fosse caloura e pudesse me dar uma luz com respeito a tanta novidade. Talvez Ember fosse útil. Sorri para mim mesma, olhando de relance uma última vez para Mabel, e saí da sala.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O Epílogo - Capítulo 3: A Sombra

Eu podia jurar que seria diferente. Queria que fosse diferente, então por quer raios estava tudo igual? Eu queria ver carros lindos, pessoas esculturais, bebidas e convites de festas por toda a parte. No entanto, já fazia mais de 24 horas que eu estava nesse campus e além de minha companheira doente de quarto, todos eram monotonamente iguais. Jeans opacos e livros, pessoas que nem se entreolhavam. Chão... era o máximo que eu podia sentir.

É claro que havia um papel ou outro colorido chamativo em algum canto perdido, mas não eram o foco. O marrom doente dos livros nas mãos das pessoas era muito mais chamativo, embora não houvesse cor alguma. Acho que isso se dava pelo fato de que os livros eram muito mais importantes que qualquer festa alí. Revirei os olhos. Ótimo! Eu havia escolhido o curso mais patético do universo. Resperei fundo - e me senti dez anos mais velha - e tomei coragem para me dirigir a minha sala.

Se eu havia achado a cor do enorme pátio lá fora patético, era porque eu não havia colocado meus olhos sobre os componentes de minha sala. Pessoas cinzas por toda parte. Óculos no rosto da maioria, cabelos presos, roupas de pouco cor, mal escolhidas para uma manhã de sol. Ninguém olhou para mim quando entrei, o que eu estranhei, pois me sentia uma luz de neon com minha sexy blusa azul e minha calça branca leve. Sentei na cadeira ao fundo, que rangeu. Mesmo assim, ninguém pareceu perceber minha existencia. Bufei. Por que não fiz algo na àrea de exatas? Devia ser mais divertido. Pelo menos as pessoas tinham que tirar os olhos dos livros para mexer na calculadora, não é mesmo?

Foi quando ela entrou na sala. Tudo mudou. O calor do sol fraco lá fora parecia ter deixado de existir. O silêncio dominado pelo som intenso de seu salto agulha. Os olhos que devoravam os livros sobre as mesas eram só dela naquele momento. A sala era de um breu inacreditável, mas eu ainda podia ver. Ainda era dia, ainda havia luz. Mas algo em mim dizia que estava escuro. Era ela. Uma alma negra que havia dominado o clima com sua presença.

Ela era linda, claro, e eu sabia admitir quando via uma mulher bonita. Quando pousou a bolsa clara sobre a mesa de madeira à frente da sala, percebi que se tratava de nossa professora. Seu rosto era quadrado, mas delicado. Os labios inacreditavelmente perfeitos e carnudos. Os olhos azuis quase cinza combinavam com os cabelos castanhos claros que pendiam no coque bem penteado. A pele era lisa, mas madura. Ela devia ter mais de trinta anos. E isso acrescentava mais ao seu charme misterioso. Mas havia algo na forma como ela se movia. Era lentamente intelectual mas ligeiramente sombrio. Aquela mulher era um ser profundo que eu não conseguia ler, e isso me deixou completamente curiosa sobre ela. Foi quando sussurrei:

-Mas... quem é você?
- Mabel Dowtchervick, a promotora de justiça mais sanguinária dos EUA. - respondeu uma voz suave e doce ao meu lado.
- Desculpe... - sussurrei de volta.
- Nunca ouviu falar de Dowtchervick?
- Ah... o sobrenome me é familiar, mas...
- Ela é uma lenda. Nunca perdeu um caso no tribunal. Eu não sei se todos os réus que ela colocou atrás das grades realmente eram culpados, mas sabe como é. Ela é boa e convincente, é só o que importa. Cometeu um crime? Reze pra não cair nas mãos dela. - explicou a garota ruiva desleixada.
- Uau. Eu sou Kris, prazer. - sorri.
- E eu sou Ember, o prazer é meu. Seja bem vinda a aula de Direito Penal. - sorriu ela de volta.
- Legal, pelo menos vamos começar com uma disciplina emocionante. - vibrei.
- Você não faz ideia. - suspirou ela, os olhos distantes.

Voltei meu olhar para Mabel, que tirava um livro negro da bolsa clara. O Código Penal. De repente me senti tão entusiasmada pela voz dela, que me apoiei sobre a mesa. Nesse instante Mabel olhou direto nos meus olhos e sorriu. Foi tão consciente que minha espinha congelou. O sorriso dela não era simpático. Parecia inquisitivo. Com muito esforço pisquei três vezes, e fingi procurar algo em minha bolsa. Mas o gelo na espinha continuava a me incomodar. Sabia... sentia... ela ainda olhava para mim.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

O Epílogo - Capítulo 2: Aparência

Era um universo particular. Com certeza, quem vivia naquele maravilhoso campus estava pouco ligando para qualquer coisa ou pessoa fora dele. É lógico que fiquei deslumbrada. Mas o fato de eu estar deslumbrada não anulava meu torpor inicial em relação a novidade. Eu podia admirar aquilo, mas ainda não conseguia me expressar.

Meu pai deixou minhas malas na porta do novo quarto. Assim que as soltou, dei-lhe um beijo e me despedi. Ele arregalou os olhos:

- Já está me mandando embora, Kris?
- Ah... ah não papai. É que... achei que o senhor já quisesse...
- Eu não quero nada. Anda, bata na porta. Quero conhecer sua colega de quarto. - reclamou ele.
- Tudo bem.

Dei dois socos leves na porta escura de madeira, e uma figura peculiar saiu de dentro do quarto, que parecia muito pequeno e simplório. Ela era menor que eu, tinha cabelo curto, meio encaracolado, e era muito magra. Cheirava a ervas, assim como o ar que se esvaía do ambiente onde ela estivera. Olhei de relance para meu pai, e seu rosto de reprovação foi imediato. Revirei os olhos.

- Oi! Você deve ser Kris. Desculpe, o quarto está uma bagunça, achei que você só chegava amanha, dia doze. - riu ela, numa voz molenga e meio baixa.
- Ahn... hoje é dia doze. - eu respondi.
- Oh, desculpe-me. Jura? Bom, eu tenho uma péssima noção de tempo. Outch! Meu nome é Annielle, prazer! - ela estendeu a mão pálida meio desajeitada.

Estiquei meu braço de má vontade, e apertei suavemente sua mão pequena, fria demais na minha. Senti o impulso inevitável de limpar a mão na minha blusa, mas felizmente meus pais tinham me dado educação. Ótimo, moraria pelos próximos cinco anos com uma garota estranha a beça. Meu humor neutro pendeu rapidamente para a irritabilidade. Agora daria patadas em qualquer um que falasse comigo.

Meu pai também cumprimentou a moça, mas olhou apelativo para mim, como se quisesse me tirar dalí e me levar de volta para casa. Franzi as sobrancelhas para ele. Já tinha passado da hora dele ir embora. De repente, percebi que só o veria novamente depois do fim do semestre. Nessa hora, o mau humor passou, e a compaixão bateu nos meus braços, que se esticaram, envolvendo o pescoço grosso de meu pai. Ele retribuiu ternamente o abraço, e sussurrou em meu ouvido:

- Por favor, não se deixe influenciar por essa gente. Confiamos em você. - o plural na voz dele que refletia a confiança de minha família toda colocava mais peso no alerta.
- Eu também confio em mim. - sussurrei de volta, confiante.

Enquanto meu pai de afastava contristado, peguei minha mala e entrei no quarto. Anielle fechou a porta atrás de mim:
- Hey Kris, gosta de chá? - perguntou a loira magrela.
- Oi? - me surpreendi.
- Chá... de ervas verdes. Estava preparando antes de você chegar. Tem erva sidreira, até limão. É uma receita que minha avó fazia. Adoro chá. É que eu to gripada também. Sabe como é. Mudanças de clima acabam com minha saúde. Olha como eu to pálida. Enfim, um chazinho alegra meu dia. Tá servida? - tagarelou ela.

O cheiro de ervas vinha da pequena chaleira que assoviava. Sorri para Anielle menos apática agora. E o cheiro do chá estava ótimo.

- Eu vou aceitar uma xícara, obrigada. - falei por fim.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O Epílogo - Capítulo 1: Expectativa

Eu devia ser a pessoa mais feliz do mundo. Havia passado em Direito na Universidade Yale. O curso mais cobiçado do mundo na universidade mais desejada do mundo. Mas minha expressão mórbida refletida no espelho enquanto penteava meu cabelo não revelava essa felicidade. Era como se eu estivesse em transe. Meus grandes olhos azuis parados, sem brilho algum. Até mesmo meu cabelo liso e negro estava sem brilho. Na verdade, eu não via brilho em nada. Estava num estado de torpor intenso, e realizava apenas movimentos automáticos.

Minha família, no andar debaixo, fervilhava de emoção. Minha mãe, Madeline, arrumava minhas malas com uma mistura cômica de tristeza e alegria. Meu pai, James, já estava procurando no Google diferentes opções de anéis de formatura. Meus irmãos, Kyle e Kimberly, ficavam aterrorizando minha mãe, fantasiando sobre as situações que eu enfrentaria na faculdade. E eu ouvia as vozes deles tão distantes que mal escutei quando meu pai chamou meu nome.

- Kris, pode descer querida?

A voz grossa ecoou pela escada e pelo corredor, me provocando um arrepio. Coloquei friamente a escova de cabelo sobre a penteadeira, e me levantei da cadeira completamente dura. Não posso dizer que estava triste, nem assustada com toda essa novidade. Na verdade, eu gostava de idéia de fazer Direito. Mas nunca tinha sido meu sonho, e sim um eco do sonho de meus pais. Eu só não queria decepcioná-los. Mas não conseguia ignorar o fato de que meu mundo ia mudar. Eu não moraria mais com meus pais, não teria mais regras, estaria por conta própria agora.

Desci a escada com a mesma expressão congelada. Isso fez com que minha mãe viesse correndo me abraçar.

- Oh! Kris, nós também sentiremos sua falta! - choramingou ela, agarrada ao meu pescoço.
- Tudo bem, mãe. Eu não vou decepcionar vocês. - tentei sorrir.
- Saindo dessa casa uma universitária, e voltando como uma doutora. - saudou meu pai.
- Doutora Kris Cooper, a advogada do Diabo! - brincou Kyle, meu irmão.
- Ela não vai ser advogada, vai ser juíza. - corrigiu Kimberly.
- Vocês estão sonhando alto demais. - eu ri.
- Você já tem planos? - perguntou meu pai, James.
- Ainda acho cedo. - cocei a cabeça.
- Cedo? Amor, você não pode prestar uma faculdade se não sabe o que quer ser. - minha Mãe interviu.
- Claro. Na verdade eu até tinha uma coisa em mente, mas não sei se sou forte o bastante pra suportar a pressão. - lembrei de um desejo que tive uma vez.
- E o que seria? - todos queriam saber.
- Promotora de justiça. É um cargo forte, mas perigoso. - minha voz ficou sombria.

Não entendi exatamente porque todos me olharam meio assustados. Promotor era um cargo digno no judiciário. Mas, pelo visto, não era uma profissão tão linda e bem vista quanto advogada ou juíza. Eu seria a carrasca do tribunal. Ótimo, agora minha família me veria como uma vilã.

Entrei no carro do meu pai, enquanto minha mãe transbordava em adeus e bençãos. Abri a janela do carona, e Kyle colocou um brinquedo em minha mão. O Homem-Aranha, claro. Que outro presente eu podia esperar de um moleque de 14 anos. Um chiclete? Pelo menos o Homem-Aranha duraria mais que 10 minutos.

- É o seu preferido, Kyle. - sorri, tentando devolver.
- Por isso mesmo. Vai ficar o semestre inteiro longe. Quero que se lembre de mim. - ele insistiu.
- Maninho, você não quer que eu leve um hominho pra faculdade. - eu ri.
- Sem preconceito, Kris. Lembra aquela vez que fiquei uma semana fora, acampando com a galera da escola?
- Sim, o que tem?
- Eu senti falta de casa. Senti falta de vocês. E a única coisa que eu queria naquele momento é ter em mãos algo que tivesse ligação direta com vocês, pra me sentir confortado. Sei que vai sentir isso também. E quando conseguir dormir apesar da saudade, vai agradecer ao Homem-Aranha. - Kyle explicou.
- Aw Kyle, isso foi lindo. Obrigada. - aceitei o presente, satisfeita com os motivos dele.

Meu pai seguiu pela rua, enquanto eu olhava pelo retrovisor. A grande casa azulada foi ficando menor, perdendo a forma e finalmente sumiu alguns quarteirões depois. Suspirei. Nesse momento apertei o brinquedo de Kyle nas mãos, e depois de sentí-lo bem, guardei-o na bolsa. Nesse instante descobri que meu medo estava em nunca mais poder voltar. Será que isso tinha algum fundamento?

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O Epílogo - Introdução

*Nova História


Eu estava no limite entre a sordidez completa e o equilíbrio perfeito. Meus momentos mais sanguinários eram como fetiches particulares que existiam apenas na minha mente pela manhã. Mas eu sabia que eles haviam sido exteriorizados, e que eu havia compartilhado eles da forma mais sádica com outras pessoas. Pessoas tão doentes quanto eu.

... doente. Era estranho falar de mim mesma dessa forma, mas que outra definição eu poderia dar ao que eu fazia? A questão principal em minha mente era se eu realmente fazia parte daquilo ou se havia sido influenciada e induzida a gostar dessa prática. Meu âmago sabia que era errado, mas cada célula do meu corpo ansiava todo o instante pelas noites em que eu não precisava me controlar. Como uma borboleta negra presa num casulo de aço, eu me prendia na frente da sociedade, me amordaçava e ignorava os apelos da minha alma ardente. E eu era tão boa nisso. Boa em fingir ser normal. Boa em ser perfeita nos momentos mais significativos. E boa em enlouquecer quando havia abertura.

As lâminas indecisas dessa segunda personalidade me seduziam. Eu já não era uma só. Era o bem e o mal, o fogo e o gelo, a voz e o silêncio, antônimos completos, fazendo o apocalipse em meu coração... eu só precisava de um pouco mais de fôlego...